Para minha amiga Elis Regina

EXAME GENITAL DE ROTINA NA MULHER ASSINTOMÁTICA

O exame genital na mulher inclui inspeção vulvar, exame especular e toque vaginal.

É indiscutível o papel do exame genital, associado à anamnese, no diagnóstico de patologias em mulheres sintomáticas, na gravidez ou fora da gravidez. Mulheres com relato de dor pélvica, sangramento genital, secreção genital ou relatos de lesões perineais, devem ser submetidas ao exame genital para diagnóstico. Além disso, devem ser examinadas aquelas elegíveis para coleta de material para triagem de câncer de colo.

Por outro lado, é questionável o exame genital (todos os seus elementos ou apenas um ou dois deles) em mulheres assintomáticas durante consultas de rotina, como o pré-natal. Faz parte daquele conjunto de ações frequentemente realizadas sem que se conheçam os objetivos, as finalidades e as evidência de efetividade. Um ritual que ritual que repetimos sem pensar, há décadas (Steer P. Rituals in antenatal care–do we need them? BMJ. 1993 Sep 18;307(6906):697-8.)

Assim, o toque vaginal (associado ou não a exame especular) continua fazendo parte da rotina da pré-natal, na primeira consulta e, muitas vezes, em consultas subsequentes.Os profissionais que assim fazem acreditam que seja necessário para identificar patologias do trato genital em mulheres assintomáticas, predizer trabalho de parto prematuro, além de informar quanto à probabilidade de parto vaginal.  É visto como um indicador da qualidade da consulta, tanto pelos profissionais quanto pelas mulheres. “Fez o exame completo, fez o que devia ser feito”. Se não faz, é “prenatalista ruim”, “desleixado”.

 

O QUE DIZEM ALGUMAS DIRETRIZES SOBRE O TOQUE VAGINAL DE ROTINA NO PRÉ-NATAL

No Brasil, algumas diretrizes não recomendam mais o toque vaginal de rotina em consultas subsequentes. Mas, em geral, mantém a recomendação de que seja realizado, como rotina, na primeira consulta (exame genital completo na primeira consulta ou ao menos uma vez durante o pré-natal).

Cadernos da Atenção Básica (MS, 2012). Primeira consulta. Exame ginecológico (inspeção dos genitais externos, exame especular, coleta de material para exame colpocitopatológico, toque vaginal). Consultas subsequentes. Exame ginecológico, incluindo das mamas, para observação do mamilo (MS, 2012)

 

Protocolo de Pré-Natal da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH, 2019). Primeira consulta. O exame ginecológico/obstétrico deve ser realizado pelo menos uma vez de forma completa, a partir da primeira consulta de pré-natal, avaliando-se a genitália externa, vagina, colo uterino, além da realização do toque bimanual para avaliar o útero (colo e corpo) e os anexos. Consultas subsequentes. “Não é recomendada a realização de toque vaginal de rotina durante o acompanhamento pré–natal, que deverá ser realizado apenas quando houver relato de presença de contrações uterinas, para avaliar presença de dilatação do colo uterino. O toque vaginal pode ser realizado por médico ou enfermeiro, desde que habilitados para sua realização”. (PBH, 2019)

Caderneta da Gestante. Distribuída pelo Ministério da Saúde desde 2013, a Caderneta da Gestante deixa bem claro que Toque Vaginal deve ser feito QUANDO INDICADO. Trata-se de uma importante modificação, já que os modelos de cartão de pré-natal utilizados até então continham um campo para descrição do toque vaginal (em todas as consultas). Como não havia qualquer recomendação quanto à periodicidade deste exame durante a gravidez, cada profissional estabelecia sua própria rotina, que podia incluir a realização do toque vaginal em todas as consultas.

No Reino Unido, a diretriz não recomenda exame genital de rotina, durante o pré-natal, nem na primeira consulta, nem nas consultas subsequentes.

“Exame pélvico antenatal de rotina não avalia com acurácia a idade gestacional, nem prediz de forma acurada parto pretermo ou disproporção céfalo-pélvica. NÃO É RECOMENDADO”. (NICE, 2018 – 1.5.3.1) https://www.guidelines.co.uk/womens-health/nice-antenatal-care-guideline/252761.article

O QUE DIZEM AS EVIDÊNCIAS ACERCA DO EXAME PÉLVICO DE ROTINA COMO MÉTODO DE TRIAGEM EM MULHERES ASSINTOMÁTICAS NÃO GRÁVIDAS

Em 2014, foi publicada uma revisão realizada pelo Colégio Americano de Médicos com o objetivo de avaliar a acurácia, benefícios e danos do exame pélvico de rotina em mulheres adultas, de risco usual, assintomáticas, não grávidas. Foram incluídas 52 publicações, sendo 32 estudos primários e 20 guidelines ou revisões. A conclusão dos autores é de que “não existem quaisquer evidências de que o exame pélvico de rotina em mulheres assintomáticas, sem fatores de risco, seja necessário. Evidência de baixa qualidade sugerem que exame pélvico pode causar dor, desconforto, medo, ansiedade, ou constrangimento em 30% das mulheres” (Bloomfield, 2014).

Outra importante revisão foi realizada pela US Preventive Services Task Force foi publicada em 2017, com o mesmo objetivo. Não foram encontrados estudos randomizados. Oito estudos relataram a acurácia da triagem através do exame pélvico para câncer de ovário (4 studies; n = 26 432), vaginose bacteriana (2 studies; n = 930), tricomoníase (1 study; n = 779), herpes genital (1 study; n = 779). Não foram encontradas evidências diretos de benefícios ou danos do exame genital como método de triagem em mulheres adultas, de risco usual, assintomáticas, não grávidas. (Guirguis-Blake JM, 2017; USPSTF, 2017). Embora o exame pélvico seja um componente comum do exame físico, não está claro se a realização do exame pélvico com finalidade de triagem, em mulheres assintomáticas, tenha algum efeito significativo sobre morbidade e mortalidade por doenças em mulheres. (USPSTF, 2017).

As conclusões da revisão realizada pelo Colégio Americano de Médicos foram criticadas pelo Colégio Americano de Ginecologia e Obstetrícia (ACOG), na época de sua publicação. Segundo o ACOG, as próprias mulheres “esperam pelo exame pélvico, que ajuda a estabelecer uma relação de confiança, tranquiliza a mulher e a encoraja a discutir temas sensíveis, como disfunção sexual”.  https://www.washingtonpost.com/national/health-science/do-you-really-need-that-pelvic-exam/2015/10/12/8c79942e-3b7e-11e5-8e98-115a3cf7d7ae_story.html

Em Boletim publicado posteriormente, levando em consideração a revisão realizada pela USPSTF, a ACOG reconheceu que:

“Os dados dos estudos são inadequados para fazer uma recomendação contra ou a favor do exame pélvico de rotina, como método de triagem em mulheres assintomáticas, não grávidas, que não apresentam risco elevado para qualquer condição ginecológica específica. O exame ginecológico deve ser realizado quando indicado pela história clínica. A decisão de realizar um exame pélvico deve ser compartilhada entre a mulher e ginecoloigsta-obstetra”. (ACOG Committee Opinion No. 754: The Utility of and Indications for Routine Pelvic Examination Obstet Gynecol. 2018 Oct;132(4):e174-e180. doi: 10.1097/AOG.0000000000002895.)

A diretriz canadense é muito semelhante à americana, mas recomendam que durante a coleta da citologia para triagem de câncer de colo um exame pélvico completo deve ser realizado rotineiramente, mesmo em mulheres assintomáticas:

“ Não existem evidências suficientes para guiar uma recomendação sobre o exame pélvico como método de triagem para malignidade ginecológica não cervical ou qualquer condição ginecológica benigna em mulheres sadias, assintomáticas com risco usual para malignidade. Entretanto, os profissionais de saúde devem considerar a realização de um exampe pélvico como método de triagem, incluindo ectoscopia, exame especular e toque bimanual, em conjunto com a coleta de material para triagem de câncer cervical, conforme as recomendações locais.  Esta prática pode identificar patologias malignas e benignas clinicamente importantes não reconhecidas ou relatadas pela paciente.  (Evidência FRACA; Recomendação MUITO FRACA)”. (Evans DG, Loewy S, Altman A, et al. No. 385-Indications for Pelvic Examination. J Obstet Gynaecol Can 2019;41(8):1221−1234)

O QUE DIZEM AS EVIDÊNCIAS ACERCA DO EXAME PÉLVICO DE ROTINA COMO MÉTODO DE TRIAGEM NA MULHER ASSINTOMÁTICA GRÁVIDA

As revisões mencionadas no item anterior, incluindo o Boletim da ACOG e diretriz do Canadá, tratam da mulher não grávida, o que pode levar o leitor a pensar que suas conclusões não valem para a mulher grávida. Todavia, não parece haver motivos para pensar dessa maneira. Não existem evidências de que a gravidez aumente o risco de câncer de colo, vagina, vulva ou ovário. A triagem para câncer de colo durante a gravidez segue as recomendações para triagem fora da gravidez (INCA, 2016). Em relação às outras malignidades genitais não existem métodos ou protocolos de rastreio específicos.

Outras condições são específicas da gravidez: investigação de doenças genitais infecciosas para prevenção de prematuridade; avaliação do colo uterino para predição e prevenção de prematuridade e avaliação da pelve para predição de distócia. Também não existem evidências que suportem a realização do exame pélvico completo (ectospia vulvar, exame especular, toque vaginal) ou toque vaginal isolado para esta finalidade.

Investigação de doenças genitais infecciosas para prevenção de prematuridade.

Infecções vaginais são comuns durante a fase reprodutiva da mulher e podem se manifestar durante a gravidez. Infecções vaginais, como vaginose bacteriana, tricomoníase e clamídia/ureaplasma, podem estar associadas a resultados gestacionais adversos (prematuridade, sepse neonatal, endometrite). Todavia os benefícios de programas de rastreio e tratamento, ainda mais em mulheres assintomáticas são controversos.

A vaginose bacteriana durante a gravidez pode ser erradicada pelo tratamento antibiótico. Todavia, o risco global de prematuridade não foi significativamente reduzido. Não existem boas evidências de que a triagem e tratamento de todas as mulheres grávidas com vaginose bacteriana irá prevenir prematuridade e suas conseqüências (Brocklehurst/Cochrane, 2013). Também não existem evidências de que rastreio e tratamento de mycoplasmaa/ureaplasma, durante a gravidez melhore os resultados gestacionais (Donders, 2017)

Em relação à Chlamydia também não existem evidências sobre benefícios e riscos. Não existem estudos randomizados avaliando políticas de rastreio (Low/Cochrane, 2016). Apesar disso, políticas de rastreio para Chlamydia tem sido adotadas em alguns países. Na Inglaterra, a recomendação é não fazer rastreio (Chlamydia screening should not be offered as part of routine antenatal care) (NICE, 2018). Nos EUA, a ACOG/CDC recomendam rastreio para Chlamydia e Neisseria Gonorrhoea em mulheres com fatores de risco ( < 25 anos; mais de um parceiro sexual; parceiro com mais de uma parceira ou DST; repetir no 3º trimestre). https://www.obgproject.com/2016/10/16/std-screening-pregnancy-cdc-recommendations/

De todo modo, o rastreio de Chlamydia e gonorreia é realizado através de testes laboratoriais específicos. A maioria dos testes comercialmente disponíveis frequentemente testam para Chlamydia e gonorreia simultaneamente. O material é colhidos através de swab uretral e/ou vaginal. Pode ser colhido pelo provedor ou pela própria paciente e não requer exame especular ou toque vaginal.

Avaliação do colo uterino para predição e prevenção de prematuridade.

O toque vaginal para avaliar o colo é simples, mas sua acurácia para predizer trabalho de parto prematuro espontâneo em gestantes assintomáticas ou com sintomas sugestivos de ameaça de trabalho de parto prematuro (presença de cólicas) nunca foi adequadamente avaliada. Uma revisão sistemática encontrou 10 estudos avaliando a acurácia do toque vaginal para predizer parto pretermo espontâneo, sendo 9 em mulheres assintomáticas (n = 12.325) e 1 em mulheres sintomáticas (n = 90), com ameaça de trabalho de parto prematuro. A acurácia do toque vaginal para predizer parto prematuro espontâneo em mulheres assiontomáticas e sintomáticas foi bastante variável. Não foi considerado um exame útil para predição de prematuridade. (Honest, 2009)

Avaliação da pelve para predição de distócia durante o trabalho de parto.

Uma revisão da Cochrane avaliou a pelvimetria clínica em gestações cefálicas no termo ou próximo do termo para definir a via de parto. Foram encontrados 5 estudos, envolvendo 1159 mulheres. Nenhum estudo avaliou outros tipos de pelvimetria radiológica e nenhum estudo comparou pelvimetria clínica versus nenhuma pelvimetria. A pelvimetria não apresentou qualquer benefício em termos de desfechos maternos ou fetais. Pelo contrário, mulheres avaliadas por pelvimetria tiveram maior chance de serem submetidas a cesariana (RR 1.34, 95% IC 1.19 to 1.52; 1159 women; 5 studies; low-quality evidence). Métodos clínicos e radiológicos para predizer trabalho de parto obstruído (“passagem”) apresentam baixa acurácia. (Pattinson/Cochrane, 2017). A publicação da OMS “Intrapartum Care for a Positive Childbirth Experience estabelece que “pelvimetria clínica de rotina na admissão para trabalho de parto em mulheres sadias não está recomendada” (OMS, 2018). https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/260178/9789241550215-eng.pdf?sequence=1

 

CONCLUSÕES

No Brasil, alguns protocolos de cuidado durante a gestação não mais recomendam toque vaginal de rotina nas consultas subsequentes de pré-natal (Caderneta da Gestante, MS). Todavia, recomendam que um exame pélvico completo deve ser feito de rotina pelo menos uma vez durante a gestação para avaliar o útero e os anexos (MS, 2012; PBH, 2019). Muitos profissionais continuam fazendo toque vaginal de rotina, mesmo em consultas subsequentes.

Não existem evidências de que o exame pélvico completo (ectoscopia, exame especular, toque vaginal) ou qualquer um de seus elementos isoladamente, como método de rotina para triagem de patologias ginecológicas malignas ou benignas, seja necessário em mulheres adultas, não grávidas, sem fatores de risco para condições ginecológicas. Embora as revisões e diretrizes a respeito deste assunto tratem de mulheres não grávidas, é plausível considerar que suas conclusões valem também para mulheres grávidas.

 O exame genital completo  (ou toque vaginal isolado) deve ser realizado em todas as gestantes com sintomas tais como sangramento vaginal, corrimento, perda de líquido, contrações uterinas, relato de lesões vulvares ou outras queixas genitais. Nestes casos, o exame genital tem finalidade diagnóstica. Deve ser realizado também em mulheres elegíveis para rastreio de câncer do colo uterino, conforme protocolos locais (INCA, 2016). Todavia, em gestantes sem sintomas pélvicos específicos, não existem evidências a favor ou contra o toque vaginal de rotina como método de rastreio para doenças maliganas ou benigas, e intercorrências obstétricas (como prematuridade). Nestes casos,  a decisão de realizar um exame genital deve ser compartilhada entre a mulher e o provedor (ACOG, 2019).

 

 

BIBLIOGRAFIA

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