Os partos essencialmente naturais quase nunca são exatamente semelhantes. São sujeitos a numerosas variações; cada um apresenta alguma coisa de particular em relação à sua duração geral, à duração dos seus diferentes períodos, à intensidade, frequência e persistência das dores (…) Jacquemier, J Marie. Manuel des Accouchements et des maladies des femmes grosses et accouchés. Paris, 1846 (p 535)
Ao longo dos últimos 30 anos, as evidências científicas demonstraram que: 1) na maioria das vezes o parto e o nascimento evoluem “normalmente”, sem a necessidade de qualquer intervenção; 2) intervenções realizadas em situações de normalidade no mínimo são inúteis, mas, na pior das hipóteses, podem ser prejudiciais para a mulher ou o bebê; 3) qualquer intervenção –  da mais simples à mais complexa (da amniotomia à cesariana, da aspiração oro-naso-faríngea à separação mãe-bebê após o nascimento) –  só deve ser realizada nas situações que fogem da normalidade.
Definir normalidade, então, passa a ser uma questão central para a assistência ao parto (vou utilizar a palavra parto como sinônimo de trabalho de parto) e ao nascimento (à gravidez, ao puerpério e ao recém-nascido), já que normalidade e seus desvios passam a ser o parâmetro para a indicação – ou não – de qualquer intervenção. Mas o que vem a ser um parto normal? Como reconhecer, em tempo real, que o parto se desviou da normalidade? O que sabemos sobre a normalidade do parto e do nascimento? Que conseqüências sobre a incidência de cesariana, por exemplo, pode ter a perda progressiva de competências em distinguir, no parto, normalidade e patologia?
No início da década de 90, ao analisarem o aumento dos índices de cesariana no Brasil, os professores Cecatti e Faúndes já chamavam a atenção para esse problema:
Há pouca motivação para se aprender como acompanhar o trabalho de parto e para entender as grandes variações da normalidade. Não raramente, também pode ser o resultado de um desconhecimento da grande variabilidade na evolução do trabalho de parte. (Faúndes A, Cecatti JG. A operação cesariana no Brasil. Incidência, Tendências, Causas, Consequências e Propostas de Ação. Cadernos de Saúde Pública, 1991;7(2):150-173)
A normalização da cesariana (e, em maior ou menor grau, todas as outras intervenções) é a consequência extrema da incapacidade de conhecer normalidade e patologia no parto. Consequência e depois causa. Quanto menos conhecemos o parto, mais cesariana; quanto mais cesariana, menos conhecemos. Se isso era um problema no início da década de 90, quando os índices de cesariana eram pouco maiores que 30%, hoje, com mais de 50%, temos um cenário ainda pior  em relação ao conhecimento da normalidade
Do ponto de vista da história da obstetrícia, isso não é estranho.  A obstetrícia contemporânea, hospitalar, intervencionista nunca teve boa relação com o conhecimento da normalidade. Em última instância, abdicou completamente de conhecê-la. “A normalidade só pode ser conhecida de maneira retrospectiva; ou seja, só depois de verificado o desfecho favorável é que podemos dizer que o trabalho de parto e o parto foram normais.”  Esse é um dogma obstétrico conhecido. É a base das intervenções de rotina no trabalho de parto. Como não se pode definir com segurança a normalidade, senão depois do desfecho, então tratam-se todos os casos como anormais. Quando todos são tratados como potencialmente patológicos, já não é relevante ou prático distinguir entre normalidade e seu desvio.
Esse entendimento é contrário à própria obstetrícia. Como pode quem “está ao lado” (obstare) não reconhecer o desvio da normalidade no momento em que ele ocorre? Resgatar conhecimentos e habilidades para reconhecer a normalidade, suas variações e desvios constitui o grande desafio para o ensino e o aprendizado da obstetrícia (e também da neonatologia), no contexto da mudança de modelo da assistência obstétrica e neonatal.  A esse respeito fazemos as seguintes reflexões:
  1. A normalidade não desperta, no estudante e no cientista, o mesmo interesse que a patologia. Uma vez que o normal existe e evolui, independente da intervenção humana, conhecer o normal não confere a quem o conhece qualquer vantagem ou prestígio. O prestígio ou a vantagem, inclusive econômica e política, são dados pelo conhecimento daquilo cuja resolução pode se beneficiar de algum tipo de intervenção, ou seja, da patologia. “O sono, a loucura, o delírio, o sonambulismo, a alucinação oferecem à psicologia individual um campo de experiência bem mais fecundo que o estado ordinário” (Renan, apud Canguillen, George. O Normal e o Patológico – 6ª edição revisada – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 14). Assim, não é mera coincidência que, desde os primeiros anos de formação, o estudante se interesse pelo exótico. Quanto mais exótico e mais raro, mais interessante. No caso específico da formação em obstetrícia, é bem conhecida a tradicional organização do ensino: o residente do primeiro ano acompanha partos normais. Mas, a partir do segundo ano, passa a dedicar-se àquilo que realmente interessa: a patologia.
2. Existem problemas nas definições de normalidade. Nas décadas de 50 e 60, vários pesquisadores buscaram estabelecer curvas de normalidade para o trabalho de parto. Friedman é o mais conhecido deles. O achado central, em Friedman e outros, de que “a dilatação cervical na fase ativa progride de maneira linear, com o limite inferior da normalidade de aproximadamente 1 cm/h em nulíparas” (Friedman, 2015), definiu  a forma como o trabalho de parto deve ser manejado –  da década de 50 até os dias de hoje. A inclinação das curvas de alerta e ação do partograma da OMS foi estabelecida segundo essa definição de normalidade. Desvios em relação a este padrão de normalidade foram adotados, de modo cada vez mais automático, como critério para intervenção. Os índices de cesariana subiram progressivamente, em todo o mundo.
Estudos recentes têm sugerido que as curvas de normalidade estabelecidas por Friedman não se aplicam às populações contemporâneas. Dados do Consortium on Safe Labor –  um grande estudo retrospectivo, multicêntrico, que utilizou informações de banco de dados obstétricos sobre a progressão do trabalho de parto –  mostraram que a dilatação cervical progride de forma mais lenta do que previamente descrito, especialmente quando a dilatação cervical é menor do que 6 cm. (Zhang J et al; Consortium on Safe Labor. Contemporary patterns of spontaneous labor with normal neonatal outcomes. Obstet Gynecol. 2010 Dec;116(6):1281-7.) Outro estudo, em população africana, confirma estes achados.  “Na ausência de problemas além de um índice de dilatação menor do que o esperado (1 cm/h) durante o trabalho de parto, a favor do melhor interesse da mulher, medidas expectantes, suportivas e centradas na mulher devem ser continuadas” (Oladapo OT, Souza JP, Fawole B, Mugerwa K, Perdona G, Alves D, et al. (2018) Progression of the first stage of spontaneous labour: A prospective cohort study in two sub-Saharan African countries. PLoS Med 15(1): e1002492).
Essa mudança no padrão de normalidade pode ser explicada por mudanças demográficas ocorridas nos últimos 50-60 anos, como aumento na prevalência de obesidade, gestações em idades mais avançadas e gestações múltiplas, assim como mudanças no perfil dos provedores.
Todavia, também chamam a atenção alguns aspectos relacionados com o desenho dos estudos. No estudo original de Friedman, das 500 mulheres acompanhadas, mais da metade teve seus partos finalizados por fórceps. Como poderia essa população representar a normalidade do período expulsivo? Apesar disso, os tratados obstétricos incorporaram limites de duração do período expulsivo baseados nos estudos de Friedman, os quais jamais representaram a normalidade desse período.
Para piorar, no dia a dia das maternidades, os profissionais passaram a utilizar limites de duração ainda inferiores àqueles estabelecidos nas definições. Isso é fato fácil de constatar – basta olhar a prática obstétrica na maioria das maternidades brasileiras. Transferida a parturiente para uma mesa de litotomia, espera-se que o nascimento ocorra rapidamente. Mais do que 15-30 minutos já é um tempo quase insuportável, gatilho para intervenções costumeiras como episiotomia, puxo dirigido e manobra de Kristeller. Qualquer uma dessas intervenções –  quando adotadas com o objetivo de abreviar a duração do período expulsivo, na ausência de estado fetal não tranquilizador, ou quando não ultrapassados os novos limites de duração (conforme estabelecido por Zhang) – é reflexo do desconhecimento acerca da normalidade desse período. O próprio Friedman, em publicação recente, apontou esse equívoco.

Sempre nos opusemos à tradição americana de limitar o segundo período em duas horas (ele nem está falando de 30 minutos), e de encorajar puxos intensos e sustentados em cada contração, o que nem sempre representa o melhor interesse do feto ou da mãe” (Cohen WR, Friedman EA. Perils of the new labor management guidelines. Am J Obstet Gynecol. 2015 Apr;212(4):420-7)

3. Outros elementos do cuidado. O entendimento de que o nascimento é um evento social e a oferta de cuidados de qualidade um direito implica a incorporação ao cuidado de outros elementos, cuja normalidade precisa ser compreendida.  Por exemplo:  quando uma equipe de saúde coloca obstáculos à presença do acompanhante na cesariana por temor de que ele “passe mal” ou “caia” durante o ato cirúrgico, isso demonstra desconhecimento da normalidade. Qual?  A normalidade de que visualizar sangue provoca, em muitas pessoas, um reflexo vagal, com bradicardia, seguida de lipotimia e queda. Isso ocorre mesmo entre profissionais de saúde iniciantes, mais predispostos a enfrentar esse tipo de cena, quanto mais entre acompanhantes. Reconhecer essa reação como normal, ou esperada, nos leva a adotar medidas preventivas necessárias. A posição do acompanhante em uma sala cirúrgica não pode ser ao pé da mesa cirúrgica, e sim sentado na cabeceira, pelo menos até que o bebê nasça – porque, após o nascimento, o acompanhante transfere completamente o seu foco do procedimento cirúrgico para o recém-nascido. Isso é normal.
Outro exemplo. Enquanto profissionais de saúde, nos ofendemos ou nos indignamos quando a família ameaça “chamar a polícia ou a imprensa” diante de um resultado adverso ou alguma insatisfação com a assistência. Ora, vivemos em uma era  de judicialização em quase todos os aspectos da vida social (conta de telefone, atraso no voo, compra de um produto pela internet) e visibilidade absoluta de quase todos os nossos atos (Facebook, Instagram, Youtube, etc). É normal o ser humano reagir quando suas expectativas não são atendidas, ainda mais em um aspecto tão sensível como o nascimento de um filho. Devemos buscar atender às expectativas, através da melhoria da qualidade no cuidado.  Mas é certo que não atenderemos às expectativas em cem por cento dos casos. Logo, devemos incorporar em nossa formação habilidades para lidar com o amplo espectro de sentimentos associados a expectativas frustradas, o qual pode incluir negação, raiva, revolta, ameaças, até a aceitação. Nenhuma dessas reações é estranha. Fazem parte da normalidade do ser humano. Conhecê-las e saber lidar com elas deve fazer parte da clínica.
É IMPERATIVO CONHECER A NORMALIDADE
Resgatar conhecimentos e habilidades para reconhecer a normalidade, suas variações e desvios constitui o grande desafio para o ensino e o aprendizado da obstetrícia (e também da neonatologia), no contexto da mudança de modelo da assistência obstétrica e neonatal. Para isso, alguns passos são necessários.
  1. É preciso inspirar nos estudantes e residentes o fascínio pela normalidade. Quando criança me lembro de um livro na biblioteca de meu pai, chamado “O negócio é ser pequeno”, em que o autor louvava as vantagens das pequenas iniciativas (Small is beautiful). Isso vale para o nosso assunto: “The normal is beautiful”.
  2. É preciso reavaliar criticamente nossas curvas de normalidade. É preciso aprender a trabalhar também no limite da normalidade – o que não significa trabalhar no limite,  que tem uma conotação de algo arriscado. Significa reconhecer o óbvio: que  normalidade e patologia, no parto, não são variáveis categóricas, mas um contínuo, que pode ser reconhecido e manejado com segurança por quem está ao lado (obstare).
  3. É preciso incorporar à clínica os outros elementos do cuidado, particularmente o acompanhante e sua família, que também passam a ser sujeitos (ou objetos) do cuidado, cuja normalidade deve ser conhecida.
Nunca é demais lembrar que esse não é um caminho para ser trilhado sozinho. Tem que ser multi. Tem que haver médicos e enfermeiras obstetras/obstetrizes. Se os médicos são especialistas em patologia, enfermeiras obstetras/obstetrizes são especialistas em normalidade. “A expertise da obstetriz reside em cuidar do nascimento normal e em suas habilidades diagnósticas em identificar desvios da normalidade, e referenciar, quando indicado.” (NHS – Minimum Standars for Organization and Delivery of Care in Labour, 2007). O olhar conjunto destas duas categorias há de fertilizar e amplificar o conhecimento de ambas sobre o fenômeno do trabalho de parto e o parto, de forma a permitir o conhecimento de segredos e sutilezas inacessíveis ao olhar isolado de cada uma delas. Aumentará a segurança do cuidado e a satisfação de todos – usuários, familiares e profissionais.

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